Um Playbook para o COVID
Dizer a um empreendedor durante a crise que ele precisa “reduzir custos” é como dizer a um escalador que, para subir o Everest, ele só precisa “chegar ao topo”. Agradecemos a dica, mas a questão real é “como”.
A Ingresse não realizou demissões por conta da crise, graças a uma combinação de estratégias, e acreditamos que vamos conseguir manter a renda líquida da equipe no nível pré-crise. Muitas pessoas me perguntaram como fizemos, então reuni abaixo os 4 princípios que aplicamos na crise: nosso “Playbook” para o COVID.
1. Abordagem de “Gatilho”
Primeiro, acreditamos que é importante alinhar nossa atitude perante a crise. Nesse momento, existe um número enorme de variáveis desconhecidas (“unknown unknowns”). Tome cuidado com “especialistas” da crise. A crise atingiu seu pico no mês de fevereiro na China e chegou ao Brasil mês passado. Ainda não temos clareza sobre o R-0 do vírus (estimado por alguns entre 2–4), a mortalidade (estimada em até 18%), a resiliência do vírus, a influência exercida pelo clima e sua capacidade de mutação (Brazil RoundTable, BCG & Henderson Institute). Com uma capacidade muito pequena de testes, somos forçados a trabalhar somente com os casos de sintomas graves.
Em um cenário de alta incerteza, recomendo que você trabalhe com uma abordagem tipo “gatilho”. Esse tipo de abordagem consiste em determinar ações a serem tomadas em resposta à evolução da crise. A evolução da crise é medida por “KCIs” (Key Corona Indicators) que você deve determinar baseado no seu negócio. Por exemplo, se você é dono de um restaurante, você precisa se perguntar quando estes estabelecimentos poderão receber clientes novamente. Se sua empresa vende um SaaS para pequenos e médios negócios, você provavelmente estará se perguntando quando seu volume de vendas voltará ao patamar normal.
Ter estes itens bem definidos, permite que você saiba o momento certo de “puxar o gatilho” de novas medidas de redução de custo. A duração da crise se mostra altamente imprevisível: é possível que encontremos tratamentos que funcionem, que o lockdown acabe antes do previsto (ou que seja prorrogado), que achemos uma vacina, etc...
“Opcionalidade” tem um valor tremendo agora. Imagine, por exemplo, que você decida mudar para um escritório menor só para descobrir que, na semana seguinte, o seu estado vai começar um plano de retomada. Ou ainda, que você decidiu desligar um departamento inteiro da empresa logo antes de um grupo de cientistas em alguma país distante descobrir um tratamento.
Por fim, o approach gatilho permite que você case reações de contenção aos cenários que vão se desenhando. No exemplo do restaurante, suponha que o dono queira cancelar contratos por 60 dias. É necessário ter na manga 3 cenários — cada um com seu gatilho — do que fazer no caso de (i) retomada gradual da atividade; (ii) retomada vigorosa ou (iii) mesmo nível/ piora da atividade)
Esta crise é um jogo de timing, onde buscamos evitar ações irreversíveis mas sem “perder o tiro de largada”.
2. Aplicando as Medidas Provisórias
Muito já foi escrito sobre preservação de caixa e no artigo de março recomendei uma lista de ações compilada pelo Gestão 4.0. O foco não é inapropriado, agora mais do que nunca cash is king.
No entanto, na maioria das empresas de tecnologia, pessoas representam o maior custo.
Como milhares de empresas viram suas receitas evaporarem no último mês, parece quase impossível não recorrer a demissões em massa. No Brasil, o custo de demissão tem impacto no caixa proporcional ao tempo de casa e reduções de remuneração são proibidas. Essa entre outras regras, têm como objetivo trazer estabilidade para o trabalhador. Porém, em um momento de crise, onde a própria existência do mercado está sendo ameaçada, essas regras podem resultar em desemprego em massa. Somente no último mês, 22 milhões de pessoas nos Estados Unidos pediram seguro desemprego.
No Brasil estima-se que a crise empurre um adicional de 7 milhões de brasileiros para abaixo da linha da extrema pobreza.
Nesses casos críticos, o governo implementa Medidas Provisórias — que são “adaptações” na relação entre empresa e trabalhador — que permitem que as empresas em caráter excepcional reduzam seu custo sem precisar demitir. Governos ao redor do mundo aplicaram variações dessas medidas de emergência. Na Dinamarca, por exemplo, o governo está cobrindo 75% dos salários nas empresas que não demitirem. Já o governo Alemão se ofereceu para cobrir 60% dos salários de trabalhadores que reduziram a jornada (Startup Genome, 2020). No Brasil, a Medida Provisória nº 936 de 1º de Abril, permitiu a redução de jornada e ofereceu um benefício emergencial ao trabalhador.
A MP permite reduções de 25% até a suspensão do contrato e possui uma série de regras complexas (por exemplo, as empresas que adotarem a redução precisam garantir um período adicional de emprego — estabilidade. Mas, no geral elas conseguem compensar salários de até R$3.315 — que são a grande maioria no país. A conta funciona assim:
Remuneração segundo a MP (com redução de X%) =
Salário Base * (1–%) + Seguro Desemprego * (%)
Portanto, alguém que ganhava aproximadamente R$ 2.500, ao sofrer uma redução de 50%, recebe subsídio de R$865 e no final acaba com um pouco mais de R$ 2,000 — uma redução efetiva de 15%. Como os impactos das reduções variam, dependendo do salário (quem ganha mais sofre maior impacto), vale a pena se perguntar: “qual o impacto percentual distribuído pela equipe?” Aplicando a redução de 50% across the board, eu obtive o seguinte histograma:
Em outras palavras, cerca de 85% da equipe, sofre uma redução de 7%–21% na remuneração. Isso nos dá ideia do quanto precisamos “correr atrás” para trazer a remuneração líquida de volta ao patamar pré-COVID.
3. Recomposição Financeira
Em momentos de crise uma redução de qualquer porcentagem pode causar grande impacto. A crise também tem impactos colaterais indiretos. Por exemplo, outros membros na família podem perder seus empregos, reduzindo a renda da casa. Segundo a pesquisa do BCG, 84% das famílias brasileiras sofreram redução de renda e 86% dessas famílias terão problemas para comprar comida depois de um mês de restrições.
Portanto, é importante buscar formas criativas de apoio para compensar a redução. Na Ingresse aplicamos dois tipos de iniciativas:
Repactuações do COVID
Existem duas formas de crescer a renda líquida: aumentando a sua remuneração ou baixando os seus custos. Em um momento de recessão severa, é central entender que surgem oportunidades de repactuar gastos.
Aplicamos algumas iniciativas de planejamento financeiro, incluindo apoio jurídico para renegociação de contratos. Este apoio pode ser aplicado, por exemplo, em repactuação de aluguéis. Como exemplo ilustrativo, considere um reajuste temporário de 15% no custo de aluguel. Tradicionalmente, o aluguel representa 1/3 da renda mensal. Portanto, no nosso exemplo numérico, a iniciativa representa uma economia de R$136, ou 5%.
Existem poucas situações onde é aceitável renegociar. Porém em momentos de recessões severas, nós acreditamos que a maioria das pessoas está disposta a se ajudar. Objetivamente, é preferível, tanto para o locatário como para o dono do imóvel um desconto momentâneo do que uma rescisão contratual. Mais importante: seja por meio de uma redução no aluguel ou outra iniciativa de gestão financeira, o exercício aqui consiste em buscar uma economia na casa dos 5% com a ajuda da empresa.
Fundo de Apoio
A segunda iniciativa que sugerimos criar é um fundo de apoio para a equipe. O fundo permite que qualquer pessoa, pertencente ou não à empresa doe com o objetivo de recompor a remuneração dos grupos mais afetados ou em situações de emergência. Como, no Brasil, empresas não podem realizar doações para funcionários, o fundo serve como uma ferramenta de apoio para situações extraordinárias (despesas médicas, acidentes, falências ou crises).
Um fundo de apoio é uma boa ideia independente de crises. Ele serve como colchão para imprevistos e é uma ferramenta de solidariedade e união entre membros da equipe. Se você é um frequentador de eventos ao vivo, considere uma doação de qualquer valor para fundo de Amigos da Ingresse. Estes valores vão para ajudar as pessoas mais afetadas no nosso segmento: profissionais de controle de acesso, atendimento, operações e todos que ficam no backstage da tecnologia que conecta você com os eventos que tanto amamos. Você pode ajudar esses profissionais clicando aqui.
A combinação da aplicação da MP a uma economia de 5% em conjunto com um fundo de apoio, permite retornar a equipe ao patamar econômico pré-COVID apesar de uma redução em folha de 50%
É importante lembrar que não existe fórmula perfeita e cada gestor deve adaptar as ferramentas disponíveis ao seu negócio. Não estou argumentando que temos uma fórmula mágica one fits all. Lembre-se que as receitas provavelmente vão cair mais do que os custos e, talvez seja mesmo impossível não demitir. Mas o exercício acima mostra como uma combinação de iniciativas criativas pode viabilizar um efeito de economia para a maioria das empresas, evitando demissões e mantendo a renda variável da maioria da equipe em um dos nossos piores momentos do mercado.
4. Investimento na Equipe e em Produto
Agora que mostramos que podemos atenuar as perdas da crise, passamos a refletir sobre as oportunidades que ela pode trazer.
Geralmente em tecnologia você tem que “trocar o pneu com o carro andando”. Porém, o impacto do COVID em entretenimento ao vivo, viagens e hotelaria tem sido de, em média, uma redução de 80–100% na receita. Essa é uma das poucas situações onde, para muitas indústrias, o carro metafórico parou. É um boa hora de olhar o motor, trocar óleo e calibrar os pneus.
- Invista em treinamento da equipe, livros, cursos online, webinars (high return; low investment). É difícil pensar em algo que traga mais retorno do que uma equipe melhor.
- Aproveite para reduzir o gap entre a gestão e middle management. Maior liberdade e aumento de responsabilidade vai naturalmente trazer maturidade para a equipe.
- Teste novas ferramentas de gestão e amadureça sua capacidade de trabalho assíncrono.
- Foque em desenvolvimento de produto. Esse é uma oportunidade onde o time de desenvolvimento poder construir com foco completo em produto sem interferências de demandas comerciais. Nosso número de commits no GitHub cresceu em 45% durante as últimas semanas.
- Aproveite para criar material de qualidade, invista em sua presença online e documente seus processos e sua cultura.
Por fim, precisamos dar manutenção à saúde psicológica da equipe. Na Ingresse, criamos ações que vão desde aulas de yoga e exercícios remotos, sessões de conversa por Zoom sobre aflições da crise até um canal no Slack focado no lado positivo da crise (#homeoffice-perks).
Essa crise vai além de causar danos financeiros, portanto é importante que, como time, a gente consiga sair da “Zona do Medo” e migre para a zona de crescimento de forma a dar significado à essas estranhas semanas. Antes de uma crise econômica, está é uma crise na vida das pessoas e são precisamente essas vidas que precisamos proteger.