Os Motivos Errados de ir ao Burning Man (e os Certos)

Gabriel Benarrós
9 min readOct 20, 2020

Faz 32 anos que um grupo de californianos decidiu queimar uma enorme estátua de madeira em formato de homem em Baker Beach, nos arredores de São Francisco. O encontro daria início ao maior movimento de contracultura da atualidade: o Burning Man. O Burning Man, que começou com 100 participantes em 1986, hoje atrai cerca de 80 mil pessoas para uma cidade temporária que existe por 10 dias em um deserto no estado de Nevada, conhecida como “Black Rock City”.

Carros saindo de Black Rock City em 2016, Beth Scupham

Com o advento do Covid-19, Black Rock City pela primeira vez em 3 décadas não será erguida. No entanto, o movimento nunca foi tão presente no imaginário millennial e no roteiro de milhões de experience seekers. O ano de 2020 representa um ponto de inflexão para os “burners” (como se autodenominam os participantes) que, órfãos do seu momento mais importante no ano, foram forçados a refletir sobre o significado do movimento. Afinal, o que é Burning Man?

Vista Aérea de Black Rock City, Jim Urquhart; Scott London

O Burning Man é Um Festival?

Não. Chamar o Burning Man de “festival” é a maneira mais fácil de se distanciar da comunidade que considera o encontro, um movimento cultural, um experimento social e uma comunidade internacional.Embora muitas pessoas sejam atraídas pela (excelente) música que durante uma semana toma conta do deserto, Black Rock City não contrata performances de nenhum tipo, não possui um line-up de artistas oficial, não vende merchandise e não recebe patrocínio corporativo. Portanto, é difícil categorizar o encontro como um festival.

Em vez disso, a cidade conta com centenas de micro programações organizadas voluntariamente pelos próprios “cidadãos” de Black Rock City. É possível encontrar na internet ou em lousas espalhadas pela cidade “listas de atrações” não oficiais, mas nenhuma delas é associada a uma organização central. Os grupos se organizam em campings (camps) independentes que não cobram nenhum valor monetário pelas suas atrações.

Mais peculiar ainda: se programar para assistir algum artista em determinado horário na verdade joga contra um dos principais valores da comunidade: o conceito de “Immediacy(aqui a lista de todos os 10 princípios). Segundo este valor, os participantes evitam passar tempo no celular, fotografar momentos-chave do evento e, alguns evitam inclusive, marcar encontros ou itinerários.

10 Symbols, James Wicham

A ideia é estar presente e absorver a arte de forma espontânea (serendipitously, como diriam os americanos). Os burners mais autênticos que conheço saem para passear com pouco ou nenhum plano em mente e valorizam “esbarrar” em música e arte. A área central da cidade (chamada de “Playa”) estará repleta com mais de 200 obras de arte de artistas independentes, formando um enorme “museu” ao ar livre. Apesar da presença de inúmeros artistas de renome (Goldfish, Diplo, Carl Cox, Skrillex, Infected Mushroom), o Burning Man se trata mais de arte, e experimentação de forma geral, do que especificamente música.

Se o seu objetivo é aproveitar um festival de música, não vá ao Burning Man.

“Step Forward”, projeto de Miguel Angel Martin Bordera

O movimento também é conhecido pelas icônicas fotos e visual à la “Mad Max” que todo ano atrai caravanas de Instagrammers em fantasias elaboradas. Boa parte destes participantes, conhecidos como weekend warriors, comparecem apenas aos últimos dias do evento quando ocorre a queima do “Homem”. Ironicamente, com o tempo, passei a apreciar os primeiros dias — quando a cidade está sendo construída — mais do que os últimos. Alguns dos cenários mais esteticamente interessantes que já presenciei, foram erguidos em Black Rock City, porém fotografar também não é a razão para ir ao Burning Man.

Se o seu objetivo é assistir passivamente, não vá ao Burning Man.

Este comportamento conflita com outro princípio que rege o encontro:Participation. A ideia de que o valor da experiência é proporcional ao seu papel em construí-la. Diferente de um festival, onde você “compra” um pacote e usufrui de uma série de serviços, no Burn a ideia é que você trabalhe com a comunidade para construir uma experiência em conjunto.

Though it manifests differently for each one of us, personal effort is integral to the social agreement we make with our fellow community members when we decide to participate in Burning Man — Marian Goodell, CEO of Burning Man

Centenas de acampamentos criam experiências que vão desde aulas de jazz até um spa completo no meio do deserto. O camp Alkaline, por exemplo, oferece um depósito enorme de pilhas de todos os tipos caso algum aparelho que você tenha trazido fique sem bateria; o Zendo oferece apoio a pessoas que estejam passando por experiências psicodélicas negativas (mais conhecidas como bad trips). Alguns camps consertam bicicletas, outros fazem café, outros ainda ministram aulas de artes marciais. Eu vi um homem montar uma biblioteca com centenas de livros no meio do deserto. Vi um correio “do futuro” que recebe, guarda e envia cartas escritas por você para você mesmo daqui há 10 anos. Outros camps criam situações cômicas ou inusitadas, como o Suburbia que monta uma estrutura que lembra casas de periferia onde nada nunca acontece e outro que monta uma cabine telefônica que permite que você “fale com Deus” e peça os mais diversos conselhos da voz do outro lado.

Imagem de The Wizard of Vegas

Minoria Vocal

Mas se existe tudo isso, porque a maioria das pessoas não sabe da existência dos camps e vê o evento como um festival de música? Isso acontece porque o Burning Man sofre de um fenômeno conhecido como “minoria vocal.”

Uma minoria vocal é um pequeno grupo de pessoas mas que toma projeção desproporcionalmente grande sobre um assunto

Não poderia ser diferente. Quando os participantes que seguem os 10 Princípios estão, por definição, longe de seus celulares ou ocupados erguendo estruturas, cozinhando ou trabalhando em seus respectivos acampamentos, toda a divulgação fica nas mãos de quem não entendeu a real proposta do Burning Man. O resultado: quem olha de fora, conclui que o Burning Man é uma rave de fashionistas e influencers no deserto.

Esse problema veio à tona no ano passado quando a CEO da ONG, Marian Goodell, publicou o artigo “Cultural Course Correcting” junto com um relatório de exemplos de pessoas usando o encontro para fins comerciais ou de autopromoção. “Certamente vocês viram exemplos. Sejam fotos comerciais ou ensaios fotográficos, product placement ou influenciadores agradecendo “amigos” por recebidos úteis [. . .] marcando as marcas parceiras nas suas fotos. Isso quer dizer que as pessoas estão usando Black Rock City para […] gerar engajamento a consumidores e vender mais” (Black Rock City 2019, Burning Man Journal). Estas práticas vão contra o princípio conhecido como “Decommodification”, que basicamente consiste em evitar utilizar o movimento como forma publicidade (como, por exemplo, no caso da marca de bicicleta na imagem abaixo).

Cultural Course Correcting: Black Rock City 2019, Burning Man Journal

O princípio de decommodification anda muito próximo ao conceito de “estar presente” (Immediacy), pois toda vez que estamos pesando em branding e mídias sociais deixamos de capturar o momento presente. Hoje em dia, é muito comum que marcas “presenteiem” pessoas influentes (mesmo que em pequenos círculos) como forma de gerar publicidade. Não existe nada de errado nisso, desde que lembremos que os“recebidos” não são presentes como aqueles que você recebe de um amigo que acabou de voltar de viagem, mas fazem parte de uma estratégia de marca moderna e, diga-se de passagem, inteligente. Coisas que consideramos “gratuitas”, não são exatamente de graça. O Instagram não é de graça, ele vende sua atenção para marcas (como um canal de televisão). O Google não é de graça, ele vende anúncios (como um jornal). Um presente genuíno precisa vir sem nenhuma expectativa de retorno ou retenção de unidade de valor ou informação em troca.

Participantes meditam no “Templo of Juno” (2012), Moss and Fog

Vivemos em um mundo permeado por redes sociais e, às vezes, pode ser difícil distinguir presentes ou posts de gratidão de campanhas de autopromoção (aqui alguns exemplos no Burning Man Project). Outras vezes, basta usar o bom senso. Uma vez no “Templo” — um centro ecumênico onde as pessoas deixam homenagens, geralmente a falecidos, e vão meditar e orar — vi entrar uma celebridade começar um ensaio fotográfico no meio das pessoas. Na época, eu não sabia dos 10 Princípios, mas a situação me pareceu comicamente inapropriada. Você entraria em uma bela Sinagoga durante o Shabbat e começa um ensaio fotográfico?

Se você está buscando um cenário para seu próximo ensaio fotográfico, não vá ao Burning Man.

Celebridade faz ensaio no Templo, Burning Man Journal

Porém, a vasta maioria dos participantes não estão preocupados com publicidade ou autopromoção. Eles ficam em camps simples e participam das tarefas do dia a dia. Segundo um burner veterano, cerca de 1/3 dos participantes são frequentadores recorrentes há muitos anos e eu estimo que menos de 2% dos ingressos vão para camps com estruturas prontas (conhecidos como “plug and play”). Embora o número de acampamentos mais luxuosos tenha aumentado, estamos longe de desvirtuar a direção cultural do evento. Além disso, como evidenciado por diversos artigos e discussões em fóruns nos últimos anos, o grupo está claramente interessado em apontar sua direção cultural. Ironicamente, apesar dos esforços, por conta desta mesma cultura, não importa quão pequena seja esta minoria, ela sempre vai ser mais vocal do que a maioria silenciosa.

Os Motivos Certos

Então qual é a real essência do movimento e quais são os motivos legítimos para ir ao Burning Man? Diferentes pessoas têm diferentes respostas aqui. Eu vejo o Burn como o principal movimento de contracultura da atualidade. Ele é contracultural porque quebra alguns paradigmas onipresentes na nossa sociedade. Entre eles: a relação tradicional de consumo (trazendo o conceito de construção conjunta), o constante uso de mídias sociais (trazendo à tona a importância do Presente) e a associação das nossas escolhas a influências corporativas.

Foto da National Geographic

De forma mais ampla, Black Rock City é a única comunidade que conheço onde as interações entre as pessoas são não transacionais. Um dos princípios mais marcantes, conhecido como “Gifting”, consiste na prática de presentear os outros participantes das mais variadas formas. Nesse contexto, a cidade não possui uma moeda. Praticamente toda vez que eu conto isso a alguém, a reação é achar que as pessoas realizam escambo.

Também não. Afinal, escambo também consiste em uma transação tradicional. Em outras palavras, é difícil pensar em uma comunidade onde as interações entre os participantes não sejam pautadas por algum tipo de quid pro quo. No quotidiano, praticamente todas as nossas interações são transações. Eu te dou dinheiro, e você me devolve um Big Mac. Eu lhe mando um “presente”, e você me gera publicidade, e assim por diante.

Mandala Tibetana e Black Rock City vistas de cima, Deck de Cultura Ingresse

Eu também acredito no valor da impermanência da efêmera Black Rock City. O fato de tudo ser desmontado, trazido de volta ou queimado ao final do evento apresenta um paralelo com as mandalas budistas. Depois de várias semanas ou até meses criando padrões simétricos e altamente elaborados com giz ou areia colorida cuidadosamente aplicados, os monges simplesmente destroem as mandalas e as devolvem ao Universo. O ato de queimar as elaboradas instalações de arte em Black Rock City, construídas ao longo de tantos meses, e deixar o deserto vazio exatamente como era antes, me ensinou uma lição sobre desapego e impermanência de forma mais eficaz do que qualquer explicação teórica que li em livros de filosofia Zen.

Voicers; NK Guy/TASCHEN GmbH

Seja pela busca de um exercício de criação conjunta ou como forma de exercitar sua capacidade de estar presente e interagir com outras pessoas de forma não-transacional, existem muitos motivos interessantes para embarcar na jornada em direção a Black Rock City. As experiências podem variar enormemente de pessoa para pessoa ou de ano a ano, seja pelo fato da cidade ser refeita do zero toda vez, ou pelas duras condições climáticas do deserto. Em todo caso eu espero que, independente do seu motivo, que ele seja realmente seu e que a experiência represente uma quebra no seu cotidiano. Caso contrário, você corre o risco de realmente ir a um festival de música.

Templo Galaxia (2018), Foto de NME

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Gabriel Benarrós

Behavioral Economist — Stanford University, Founding-CEO @Ingresse, Endeavor Entrepreneur, Forbes 30 Under 30