O Que Está Havendo Na Amazônia?

Gabriel Benarrós
7 min readFeb 8, 2021

Poucas cidades no mundo foram atingidas pelo Covid-19 como Manaus, Amazonas. A cidade — onde nasci — tem o pior índice de mortes per capita no país e o segundo maior índice de casos por cama de UTI (BCG Live Session #7, 2020). Durante os últimos meses presenciei a perda de diversos conhecidos; em alguns casos, múltiplos membros em uma mesma família.

O primeiro caso em Manaus foi de uma mulher que havia viajado ao Reino Unido em 13 de março, 2020. Apenas 2 meses depois, a cidade bateria 1.000 casos por dia com mortos pelo Covid-19 sendo enterrados em vala comum e total desestabilização do sistema de saúde. O mundo voltaria os olhos para Manaus, dessa vez não por sua beleza natural, mas sim para acompanhar o colapso de seu, já frágil, sistema de saúde.

Após o pico em julho de 2020, acreditava-se que Manaus havia atingido imunidade de rebanho. Um grupo de cientistas estimou que “3/4 da população já tinha sido infectada”. Um artigo acadêmico na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) entitulado Porque Manaus será a primeira cidade brasileira a derrotar a pandemia Covid-19 afirmava que o pior já tinha passado. Por 7 meses consecutivos a cidade não teve novos picos. A “quarentena” na capital do Amazonas foi relaxada (índice de isolamento de 47% segundo o BCG) e acreditava-se que a doença tinha se espalhado rápido e que, portanto, se estabilizaria rápido.

Casos Diários em Manaus no Segundo Trimestre de 2020, Washington Post

Mas não foi assim. A segunda onda levou o sistema de saúde à saturação em um período ainda menor. O primeiro surto tinha levado os hospitais ao colapso em menos de 30 dias, já a segunda onda atingiria um pico ainda maior em apenas 10 dias segundo relato no Washington Post.

Casos Diários em Manaus no Segundo Trimestre de 2020, Washington Post

Os gráficos estão em escala, mostrando que Manaus essencialmente teve duas primeiras ondas, o que convida a pergunta:

Como uma cidade que teoricamente já estaria imunizada pode ter sofrido uma segunda onda de maior magnitude que a primeira?

Abaixo trago as três hipóteses (e uma opinião) que podem explicar a crise humanitária que está ocorrendo na Amazônia. Como no meu primeiro texto sobre o Covid-19, o objetivo é ganhar clareza em meio a um turbilhão de informações incompletas ou tendenciosas e trazer uma visão mais neutra e “despolitizada”.

Se você puder, também convido você a doar para ajudar o Amazonas na compra de cilindros de oxigênio e equipamentos de proteção. A Ingresse disponibilizou um link de coleta isento de taxas de conveniência para as ONG’s: Salaada Solidária, Rede Solidária, Time do Bem, Projeto Entrega e SOS AM. Agradeço de coração a toda equipe Ingresse que trabalhou pro-bono na iniciativa, a grupos como a HINODE, Claro, o grupo Gestão 4.0 e a todos que doaram qualquer quantia. Vocês fizeram a diferença.

Flyers das Campanhas de Auxílio ao Amazonas

As 3 Hipóteses

( 1 ) Perda de Imunidade Após Alguns Meses

Um dos primeiros casos de re-infecção foi confirmado em Manaus: Mariana Leite (31) tinha testado positivo para anticorpos em Junho e teve novo resultado em 8 de janeiro. A maioria dos médicos, no entanto, afirma que estes casos são raros. Estudo que examinou 12.000 profissionais de saúde infectados em Israel concluiu que, mesmo em indivíduos que não desenvolveram anticorpos, re-infecções são extremamente raras. Outro estudo no Qatar envolvendo 43.044 participantes rastreados, aponta para um índice de reinfecção de apenas 0,02%. O imunologista Vicente Rizzo, Diretor de Pesquisa da Soc. Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, acredita que ocorra 1 reinfecção a cada 300 mil casos: um índice ainda menor.

“Mas eu tenho um amigo que foi re-infectado!” Na verdade, a maioria dos casos de reinfecção que ouvimos falar parece ser resquício do primeiro vírus ou falha em testagem (um falso positivo). “É normal que pacientes exibam resultado positivo no PCR após 60 dias. Nesses casos, a mesma variante do vírus pode voltar a se manifestar“. Também não é possível comparar IGG com PCR (pois o IGG pode reagir positivo para outros vírus do tipo “corona”). Para uma reinfecção ser comprovada de fato são necessários 2 resultados positivos RT-PCR (cotonete) em intervalo superior a 90 dias e uma análise complementar do sequenciamento do genoma do vírus. Em 28/12 existiam apenas 30 relatos comprovados (Época, Um Presença Permanente).

Vale dizer: não se entende completamente o comportamento do vírus para períodos mais longos. Estudos no Reino Unido mostraram que perder imunidade antes de 6 meses é improvável. Apesar do novo pico em Manaus ter ocorrido 7 meses após o primeiro (um período maior do que o estudo cobre), se reinfecção fosse o vilão aqui, teríamos também uma série de ocorrências novas em locais não vacinados. Além disso, o índice de isolamento social no Amazonas aumentou de novembro em diante (ODS Atlas Amazonas), sugerindo que perda de imunidade apenas não pode explicar o aumento de hospitalizações.

( 2 ) Não Tínhamos Atingido Imunidade de Rebanho

É provável, portanto, que não tivéssemos atingido imunidade rebanho. Segundo a Sylvain Aldighieri, oficial senior da Pan American Health, se re-infecção fosse o fator dominante “teríamos muito mais ocorrências” [. . .] Temos que usar o senso comum nesse ponto. Imunidade de rebanho não tinha sido atingida em Manaus” (Washington Post) e a estimativa de 76% de prevalência estava errada. Muito errada.

Porém mesmo que a cidade não tenha atingido imunidade de rebanho, o que explica um surto maior do que na primeira onda? Pelo menos uma parte da população já deveria estar imune o que mitigaria a situação, certo? O que sugere que outro fator deve ter influenciado a crise.

( 3 ) Novas Variantes

Recentemente, três novas variantes foram detectadas e causam preocupação (B.1.1.7, B.1.351 e P.1) pois possuem uma “constelação de mutações única”. Evidência in-vitro sugere que a presença dessas mutações reduz neutralização do vírus por anticorpos” (Resurgence of COVID-19 in Manaus, Brazil, despite high seroprevalence, Sabino et al). Embora não haja indícios conclusivos de que a nova variante pode afetar pessoas que já tiveram Covid-19, essa variante parece ser mais contagiosa.

Ainda não foi possível medir seu nível real de transmissibilidade, mas sabemos que ela possui mutações similares às cepas B.1.1.7 (N501Y) and the B.1.325 (K417N/T, E484K, N501Y) que circulam predominantemente no Reino Unido e África do Sul e que também demonstram maior transmissibilidade. Isso sim explicaria um pico maior a esta altura do campeonato.

Esta versão do vírus foi identificada pelos japoneses, detectada em São Paulo — que decidiu concentrar pacientes da variante no Hospital Municipal de Pirituba —e nos EUA na segunda-feira (25/01/2021) (Washington Post). A cepa já é dominante em Iquitos no Peru e em outras cidades da Bacia Amazônica com foco em Manaus (The Lancet). Segundo pesquisa de Ester Sabino, está versão do vírus era responsável por por 42% dos casos de Covid-19 entre 15 e 23 de Dezembro. Em janeiro, nova amostra já apontava que 85% dos casos novos vinham desta variante. Alguns veículos de mídia já falam de 91%.

O Fator Manaus

Por fim, Manaus é uma cidade peculiar com composição particularmente perigosa em um cenário pandêmico. A cidade é a sétima mais populosa do país , concentrando mais da metade da população do Amazonas. Mais importante: não há outras grandes cidades no Estado e, portanto, os únicos hospitais com estrutura do Amazonas se encontram em Manaus.

Isto quer dizer que, durante um surto pandêmico (de uma variante mais agressiva) todos os 2.2 milhões de habitantes disputam menos de 600 leitos de UTI (Indicadores do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil, CNES). A cidade desativou os adicionais que haviam sido criados entre julho e outubro.

Para piorar: cercada pela floresta Amazônica, não há rodovias que interligam a cidade com outras cidades grandes. Portanto, os pacientes ficam impedidos de recorrer a outros centros médicos por terra. A única forma de sair de Manaus é por avião (meio de transporte ao qual a maioria da população não tem acesso).

Fonte: BCG Live Session #7, Abril, 2020

Uma cidade geograficamente isolada, sem rota de escape barata e com uma variante mais transmissível, aliada a um histórico de desvio de verbas públicas e gestão ineficaz e você tem uma receita desastrosa: no pico da primeira onda o Estado registrava 92 mortes por milhão: 65% mais mortes por milhão do que Pernambuco, o segundo Estado com pior índice. O melhor índice era de Tocantins com 2 mortes/milhão (BCG Live Session #7, 2020)

Manaus Precisa da Vacina, e Rápido

Manaus precisa se vacinar o quanto antes. Há fortes indícios que a vacina inibe as variantes. No caso do Reino Unido, a vacina Pfizer/BioNTech imunizou pessoas contra a sua variante mais agressiva (B.1.1.7). A vacina da Moderna também se provou efetiva contra a variante que emergiu na África do Sul (IG Saúde)

Apesar da eficácia abaixo do ideal, temos também indicações de que as vacinas vão inibir sintomas mais graves. Um fato que passa despercebido à maioria das pessoas é que a pandemia acaba, não quando mais ninguém contrai a doença, mas quando ninguém mais corre risco de vida.

Por fim, um aprendizado importante que a cidade também nos traz é que tipos diferentes de metrópole apresentam riscos diferentes e que planos de imunização, provavelmente precisam priorizar centros populosos isolados com pouca estrutura médica. Espero sinceramente, que daqui para frente a cidade possa se recompor, que façamos melhor gestão dos nossos recursos e que voltemos a lembrar de Manaus principalmente pelos seus rios e florestas.

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Gabriel Benarrós
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Written by Gabriel Benarrós

Behavioral Economist — Stanford University, Founding-CEO @Ingresse, Endeavor Entrepreneur, Forbes 30 Under 30

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