O Futuro das Experiências ao Vivo

Gabriel Benarrós
18 min readJun 15, 2020

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com Gabriela Dama

No meu último post “O Retorno do Drive-In”, falamos sobre como este tipo de evento se tornaria o primeiro passo de um gradual retorno do mercado de experiências ao vivo. Mês passado, 84% dos nossos usuários declarou que iria para um evento drive-in e, como esperado, os drive-ins se tornaram o foco do público que busca experiências ou simplesmente sair de casa (Ingresse Pesquisa Drive In e Lives, 2020). Hoje drive-in’s são donos de mais de 90% da bilheteria no Brasil (O Globo).

Porém, este tipo de evento provavelmente é mais um meio do que um “fim”. O sold out instantâneo que observamos em eventos como o Love Cine na Arena Jeunesse ou o Cine Stella no Parque Estaiada, refletem uma “crise de abstinência” por experiências ao vivo. Para efeitos deste artigo, utilizo “experiências ao vivo” (ou “EAV’s”) para me referir a shows, festas, festivais, exposições, e toda a gama de entretenimento presencial.

Neste texto, eu arrisco uma previsão sobre como a indústria do entretenimento irá se reorganizar em decorrência do COVID e demonstro (matematicamente) que o novo arranjo, na verdade, é muito mais promissor do que o atual. Também gravei um vídeo complementar para explicar o conteúdo desse post, confira abaixo:

The Show Must Go On

O desejo por EAV’s nunca foi tão grande. A necessidade de conexão com outras pessoas e de presenciar expressões artísticas é um ímpeto humano. Ímpeto que vem crescendo com a nova geração. Se a Geração-X sonhava em ter coisas (carro, casa, barco, etc.), a Geração Y, sonha em viver coisas.

78% dos millennials preferem gastar dinheiro com experiências do que comprando algo “atraente” e 55% declaram estar gastando mais do que antes com estas experiências. Quase 80% acreditam que suas melhores memórias foram durante um evento ou experiência ao vivo (Harris Poll on behalf of Eventbrite 2014). Eu sei que as minhas foram. Segundo a Nielsen 2016, 52% das despesas com música foi com ingressos para shows ao vivo (Music in the Air, Goldman Sachs, 2016).

Quando ficarmos mais velhos e olharmos para os nossos melhores dias, não vamos lembrar das coisas que compramos. Vamos lembrar de viagens com amigos, viradas de ano perto do mar, expedições na natureza, festivais de música, carnavais, arte e dias felizes com família e amigos.

Para agravar a crise, períodos de recessão econômica tendem a exacerbar nossa necessidade por alento psicológico, portanto, o share of wallet dedicado a EAV’s cresce em relação a bens de consumo (US Bureau of Economic Analysis, Pollstar, Goldman Sachs).

Fonte: US Bureau of Economic Analysis (BEA), Pollstar, Goldman Sachs

Temos, portanto, a geração mais faminta por experiências em meio a uma recessão gerada por uma pandemia, que da noite para o dia erradicou todo tipo de EAV. Voilà, cria-se a maior crise de abstinência por EAV’s da história.

E a Oferta de Conteúdo?

Continua mais forte do que nunca. Nunca antes na história, artistas dependeram tanto de performances ao vivo. Já fazem duas décadas que receitas com música gravada registram uma forte queda. Em 2013, EAV’s ultrapassaram discos em receita pela primeira vez desde sua invenção e, desde então, a fatia dos artistas em streaming tem caído progressivamente. Em números, para cada R$10 gastos com música gravada, apenas R$1,70 resta para o artista. Já no caso de shows ao vivo, de cada R$10 gastos, R$6,50 vão para quem está no palco.

Fonte: Music in the Air, Goldman Sachs

Olhando para os artistas mais bem pagos, esta discrepância aumenta ainda mais. Dentre os 100 artistas mais bem remunerados no mundo, EAV’s são responsáveis por metade da receita (Goldman Sachs). Para Taylor Swift, a artista mais bem paga de 2019, nada menos que 91% da receita veio de shows. Em 2018, Drake foi o artista que mais gerou receita por streaming no globo e, ainda assim, somente 30% da sua receita total veio de royalties.

Em outras palavras, se um artista quer ser muito bem pago, ele precisa fazer muitos shows.

Não Prevemos Mudanças na Demanda/Oferta

Esta configuração levou o Goldman Sachs, em excelente relatório, a concluir: o COVID “não vai mudar tendências seculares em experiências ao vivo [. . .] não antecipamos nenhuma mudança estrutural permanente na demanda ou oferta desta indústria” (Music in the Air, Goldman Sachs, 2016).

Os fãs confirmam essa resiliência na indústria: 91% dos consumidores de música ao vivo ao redor do mundo declaram que retornarão a shows ao vivo pós-COVID. Segundo ampla pesquisa da Live Nation, 79% dos fãs planejam retornar em até 4 meses após o relaxamento (Ticketmaster US Impact of COVID-19 on Live Events, 2020).

Fonte: 2020 Ticketmaster US Impact of COVID-19 on Live Events (Active Fan) Benchmark Study

Nossa pesquisa indica que 23,6% das pessoas irão a eventos assim que a quarentena acabar. Enquanto 30,3% afirmaram que irão a eventos depois de 1 a 4 meses do fim da quarentena, 26,5% ainda não sabem quando voltarão a ir e 19,7% só voltarão a ir depois da vacina.

Com enorme pressão de oferta e demanda, o que deve mudar, na verdade, é o formato da experiência. Neste artigo não vou me ater a quando vamos ter a indústria de música de volta — a pergunta que mais ouço hoje em dia. Em vez disso, vou focar em algo mais importante do que o “quando”, o “como”.

Novos Formatos

O mercado de eventos nunca esteve tão aberto à inovação. Inovação acontece quando existe uma demanda e oferta por um produto latente e incentivos suficientes para todos os envolvidos correrem riscos. Quando as pessoas estão dispostas a participar de modelos novos (seja de um show de dentro do carro ou de uma festa virtual), inovação ocorre, por design ou por acidente.

Milhares de festivais foram desmarcados. Mas enquanto uns esperam “a volta”, outros aproveitam o solo fértil para se reinventar. No final de semana passado (12 a 14 de junho), o “Download Festival” apresentou as lendas do Rock: KISS, Iron Maiden e System of a Down. Além do Download, na lista dos eventos que migraram para o virtual estão o Lightning in a Bottle (festival de música eletrônica na Califórnia Central), o festival inglês Wireless Festival, o Burning Man (que anunciou uma plataforma inteira de experiências remotas chamada de Kindling) e, mais recentemente, o Lollapalooza nos EUA.

No caso do Download, fãs são “encorajados a colocar suas tendas no jardim, usar merchandise do festival e mandar suas fotos e vídeos”. Já no Wireless, interações foram migradas para o mundo virtual através de parceria com a companhia de realidade virtual, MelodyVR. As performances dos artistas poderão ser vistas pelos fãs entre 3 e 5 de julho em realidade virtual 360° (IQ Mag, 2020).

Muitas outras inovações interessantes surgirão ou serão aceleradas no contexto do COVID: a adoção do cashless para consumo de A&B (já era hora!), salas de bate-papo para fãs, avatares, realidade virtual/aumentada, shows dentro de jogos de video game para milhões de pessoas (exemplos são Travis Scott, Haikaiss, Lexa e Alok), túneis de higienização para casas noturnas, e até um traje anti-COVID com luzes de LED e compartimento para fumar — você pode ver todas estas inovações e mais no nosso portal).

Mas achar que o futuro dos festivais é “virtualizar” a experiência é equivalente a achar que o carro de 2020 seria o “carro voador”. O futuro não é linear — ele é “disruptivo” — e toda vez que extrapolamos linearmente, erramos. O carro do futuro não voa, ele vem por aplicativo . O “novo normal” já nasce velho.

O Modelo Híbrido: Eventos Satélite

Então como serão os eventos do futuro? Virtuais ou presenciais? Na minha opinião, eles serão uma combinação de ambos.

A este ponto, quase todos os experts da indústria já entenderam que experiências por streaming não substituem experiências presenciais. De acordo com pesquisa da Bandsintown, 74% dos fãs de música no mundo continuarão assistindo eventos por livestreaming depois que os eventos retornarem (Bandsintown Fan Survey, 2020). Resultado semelhante ao da nossa pesquisa, na qual 53% dos usuários afirmaram que continuarão assistindo lives depois da pandemia. Livestreaming, na verdade, permite que pessoas no mundo inteiro se familiarizem com o show de diversos artistas e, eventualmente, se tornem fãs presenciais.

Em 2019, 45% dos jovens ingleses entre 16 e 24 anos afirmaram que usaram o Facebook e o Instagram para escutar músicas do artista antes de ir ao show, de acordo com dados da IFPI. A popularidade das mídias sociais amplia bastante a velocidade com que o boca a boca é compartilhado, tornando mais fácil do que nunca a descoberta de shows e músicas, especialmente em países fora da residência do artista. As tendências das mídias sociais estão aumentando a conversa entre fãs e artistas, abrindo as portas para novas oportunidades de monetização por meio da venda de ingressos, merchandise e patrocínios. Desta forma, o crescimento da modalidade é complementar e não“canibalizador”.

Porém, quase nada foi escrito sobre como estas interações serão no futuro dado a nova configuração tecnológica. Posso arriscar uma previsão?

Exportando Experiências

O que o streaming nos permite fazer é essencialmente “exportar” um evento para a casa das pessoas. No Brasil, vimos os primeiros exemplos disso criados pela agência Cuco, que lançou o “Art & Jazz” — a versão streamed do evento Jazz Mansion, uma festa de jazz moderna que geralmente ocorre em mansões históricas de São Paulo. Nesta versão, 100 pessoas se reuniram para fazer composições de arte e pintura enquanto ouviam os músicos (Patrocínio: Jameson). Os kits de arte foram vendidos pela marca aos participantes.

Kits do Art and Jazz da Agência Cuco

Já o “Fechado para Jantar”, um jantar itinerante com intervenções artísticas, criou sua versão de Dia dos Namorados durante a quarentena. Neste formato, os compradores adquirem os kits para preparar o cardápio guiados remotamente pelo chef Raphael Despirite e embalados pelo músico Alex Albino (Patrocínio: Santander).

Neste último domingo, a banda Inimigos da HP realizou o maior evento neste formato do qual tenho conhecimento no país: “O Churrasco com Inimigos”.

Curiosidade: o maior evento nesse formato que identificamos no mundo foi o da banda Coreana SuperM, que vendeu 75.000 ingressos em abril em um show exclusivamente online, rendendo à banda um cachê de 2 milhões de dólares — o dobro do cachê que a mesma banda tinha ganhado no seu show anterior em Los Angeles (IQMag).

SuperM e fãs durante “Beyond Live”

A “festa em casa” dos Inimigos da HP, foi provavelmente o maior churrasco com pagode no mundo, reunindo compradores no Brasil, México, Estados Unidos, Portugal, etc… A banda utilizou um produto recentemente lançado em Beta pela Ingresse, chamado de “Ingresse Studio”. O Studio permite que eventos tragam alto valor em produção com venda em um link seguro integrado ao ingresso (o que não é possível pelo Zoom nem YouTube). Uma das partes mais marcantes do evento, foi quando umas das fãs cantou junto com o vocalista da banda a música “A Regra do Jogo”.

“As Pessoas Não Vão Pagar”

O evento também quebrou um tabu importante na indústria: o de que as pessoas não pagariam para assistir um show em casa. Muitos artistas até então se preocupavam com a repercussão de eventos não puramente filantrópicos.

Na verdade, muitas pessoas não só estão dispostas a pagar, mas consideram “dinheiro bem gasto”. Quando perguntamos aos nossos usuários “se você não puder ir a um evento que gosta muito por causa do preço ou da distância, você compraria um ingresso bem mais barato para acompanhar esse evento ao vivo da sua casa?”, 15,7% respondeu que sim e outros 30%, “talvez”. Isso quer dizer que 46% da base são potenciais compradores desse produto. No Instagram, a aceitação da base foi ainda maior com 75% mostrando interesse no produto.

Banda Super Junior vendendo Lives e Merchandise na Coréia

Além disso, 44% da nossa base de usuários declara que pagaria para ver um show em casa; 20% pagaria se a experiência fosse “única com vários artistas”; 21% afirma que pagaria se o show fosse “exclusivo e diferente” (exemplo: cenário diferente, repertório específico).

Já 15% pagaria pela “possibilidade de interagir com o artista e aparecer na live”. Vertente que foi explorada também pelo Download Festival, que trouxe uma agenda de atividades que incluíam sessões de Perguntas e Respostas com os artistas. Já o Inimigos da HP, permitiu que os usuários escolhessem músicas do repertório durante o evento (IQ Mag, 2020; Ingresse Pesquisa de Drive-Ins e Lives, 2020). No show de Lewis Capaldi, alguns usuários tiraram fotos abraçando a TV dizendo e declararam: estas “foram as melhores £5 já gastas” (IQ Mag, 2020).

Em comentário a parte, eu acredito que ninguém deveria hesitar em cobrar pela sua arte. Eu falho em entender porque de todas as profissões, somente artistas acham que precisam trabalhar de graça. Principalmente, durante a maior crise do segmento na história.

É importante também lembrar: filantropia e business não são mutuamente exclusivos. Na verdade, os melhores negócios conciliam as duas coisas. No caso do Inimigos, por exemplo, 20% do valor arrecadado foi doado para o Fome de Música — festival filantrópico que está unindo artistas e público na luta contra a fome no Brasil. Para 38% dos nossos usuários, doar o valor para uma causa aumenta a propensão de compra para este tipo de experiência (Ingresse Pesquisa de Drive-In e Lives, 2020). Assistir shows é bom. Assistir e ainda ajudar uma causa, melhor ainda.

Eventos Satélite

O streaming deve permanecer depois que a vacina surgir. 3/4 das pessoas acredita que continuará assistindo livestreams regularmente mesmo depois que os eventos ao vivo retornarem (Bandsintown Fan Survey, 2020). Do ponto de vista de negócios, existem muitas razões para sempre transmitir o evento via streaming:

  • Com a transmissão, o evento pode atingir um número de convidados (e rentabilidade) muito maior do que qualquer arena. Esta capacidade de expansão se torna ainda mais importante pois, por um período indeterminado, teremos um limite de pessoas pequeno por evento na maioria das grandes cidades.
  • Uma parcela dos fãs, mais conservadora, vai evitar aglomerações mesmo depois do relaxamento. Cerca de 20% dos nossos usuários na Ingresse afirmam que retornarão a frequentar eventos somente “após a vacina”, o que reflete receio inicial na retomada (Ingresse, Pesquisa Drive-In e Lives, 2020). Em um ambiente mais incerto, as pessoas tendem a se voltar a eventos menores e ambientes mais familiares. Portanto, teremos menos viagens de longa distância visando entretenimento. Brian Chesky, do AirBnB, comenta que a tendência deve ser de “viagens perto de casa, destinos a menos de 300 milhas”.
  • Além disso, durante recessões as pessoas buscam reduzir gastos e, portanto, entretenimento mais econômico, favorecendo streaming que, por conta da sua escalabilidade, pode cobrar muito mais barato que shows presenciais.

“Nós acreditamos que todos os eventos no futuro serão live streamed” — Tom Roetgering, GUTS Tickets (IQMag)

Neste cenário, devemos ver um fortalecimento do entretenimento local. “A ausência de artistas internacionais é uma boa oportunidade para fortalecer a comunidade local a novos DJ’s”, afirma Chen da Daily Vinyl’s em entrevista ao Resident Advisor.

Uma vez que artistas internacionais realizam streaming, estes eventos locais podem incorporar o conteúdo às suas experiências. As “festas em casa”, portanto, passam a ser tornar eventos locais de pequeno porte. Eu acredito que este será o caso, especialmente, se os criadores de conteúdo perceberem a enorme oportunidade que este modelo híbrido apresenta.

Análise Econômica

Para enfatizar a oportunidade, abaixo eu trago uma análise econômica simplificada. Exponho a prova matemática, mas é simples entender toda a análise sem a equação.

Abaixo apresento duas curvas simplificadas de oferta e demanda. As curvas são funções simples do tipo que você encontra em um aula introdutória de economia e mostram quanto cada número de pessoas pagaria por um produto ou serviço. Em um mercado, o “melhor” preço é dado quando a oferta é igual à demanda. Portanto, em determinado evento, o preço “T” é o “melhor preço” que um produtor de eventos pode escolher.

Se o preço do ingresso estiver abaixo do ponto onde as linhas se cruzam, o produtor do evento poderia ter cobrado um pouco mais caro e existe uma demanda maior do que oferta: filas na porta. Se o preço do ingresso estiver acima, teremos menos pessoas do que a capacidade do evento comporta, com risco de ter um evento: “o show estava vazio”.

Na prática, é extremamente difícil (e arriscado) acertar o preço certo do ingresso. Por isso, geralmente produtores trabalham com “lotes” que progressivamente aumentam o preço do ingresso em resposta à demanda. Isso naturalmente gera perda econômica (a área cinza) para o produtor, mas reduz o risco de começar com um preço alto demais.

Eventos possuem dois “problemas” principais do ponto de vista econômico: (1) só é possível ter um preço de ingresso em dado momento (compare, por exemplo, com linhas áreas que usam uma série de algoritmos para determinar preços dinâmicos com variação de site para site) e (2) a estrutura física do evento permite um número finito de participantes. Portanto, o máximo de valor que o nosso evento pode gerar, é a área do quadrado. Para dar um exemplo numérico aqui, vou assumir que este evento vende 5.000 ingressos a R$100.

O Modelo Híbrido

Agora vamos comparar o que isso significa em um mundo onde eu posso ter vários “eventos satélite” (ou seja, eventos locais que, através de streaming, recebem conteúdo do evento principal).

Imagine que por um preço baixo, você possa vender streaming de uma experiência. Nas nossas pesquisas, dentre os usuários que afirmaram que comprariam um show remoto, 72% pagaria R$20 ou menos e 31% declara que pagaria até R$50. Acreditamos que o streaming deve ter boa aceitação com preços de R$5–20.

Apesar de mais barato que os ingressos tradicionais, esta modalidade apresenta escala praticamente ilimitada. O show da banda Di-rect foi gravado do Teatro Real (Koninklijke Schouwburg) em Haia nos Países Baixos, um teatro de 680 lugares que vendeu 10 mil ingressos. Isso quer dizer que mesmo se o ingresso for 14x mais barato, vale mais a pena fazer o show remotamente do que presencialmente.

O streaming também permite que a experiência seja replicada em versões “satélite” do evento principal. Para dar uma ideia melhor do que quero dizer: um evento que recebe streaming do evento principal, pode oferecer uma estrutura adicional open bar e open food, criando uma versão high-end do evento principal. Um exemplo prático disso ocorreu durante a Copa do Mundo na série de eventos Arena Camisa 12 em São Paulo que ofereceram uma experiência premium com transmissão ao vivo dos jogos.

Da mesma forma que podemos oferecer uma experiência premium do evento, podemos também oferecer uma experiência mainstream — uma versão mais econômica do evento principal (aqui no modelo chamado de evento “Sol”). Este ingresso deve ser mais caro que o streaming em casa, porém mais barato que o evento gerador de conteúdo. O evento sol continua ocorrendo, permitindo que estas várias modalidades coexistam. Em outras palavras, para cada perfil de comprador existe um tipo de evento que vale mais a pena (seja pela distância geográfica, perfil econômico ou fit cultural).

E o que este novo tipo de arranjo representa no nosso modelo econômico?Para esta simulação, eu considerei 4 eventos satélite com preços que custam 1.5x, 1.2x, 1x, 0.5x e 0.1x o preço do ingresso do evento original. Para chegar na nova estimativa de rentabilidade, basta pela mesma lógica, somar as áreas das bilheterias.

Simplificando a conta acima, chegamos na expressão: 4.95 a * T² + 4.3K * T. Para tangibilizar a conta, eu preciso definir valores das variáveis a e T, o que podemos fazer se concordarmos que o nosso evento original venderia 5.000 ingressos a R$100 e 10.000 ingressos a R$50. Razoável?

Nesse caso temos o seguinte sistema:

Alérgico a matemática? Então pode esquecer a conta e veja como é fácil ver nas áreas representadas que o potencial do modelo híbrido é mais promissor. Afinal de contas, ele resolve simultaneamente os dois principais problemas em um evento: escalabilidade — pois em suas instâncias permite venda de um número ilimitado de ingressos — e a possibilidade tiering de preços nos diferentes tipos de evento. O que do ponto de vista econômico quer dizer que você consegue “personalizar” eventos para entregar inúmeras versões do conteúdo original.

No limite, um evento “sol” bem sucedido pode ter diversos satélites ao seu redor que atendem versões regionais do evento em outras cidades ou países, versões premium do evento principal, versões patrocinadas por marcas com look and feel diferente, etc. Também acredito que teremos versões do evento streamed nas casas de celebridades ou artistas que funcionam como eventos “reverberadores”.

Alguém Já Opera Assim?

O modelo parece distante da realidade? Na verdade, ele é uma formalização de arranjos que já acontecem parcialmente em outros lugares do mundo ou plataformas.

O modelo talvez tenha soado como old news para os fãs de online gaming. A Blast, que transmite o campeonato do jogo Counter Strike, por exemplo, faz através de “eventos satélite” organizados por gamers. Se destaca, nesse caso, o gamer “Gaules” que transmite sua versão customizada do evento, adicionando, dentre outras coisas, narração própria ao campeonato. O Gaulês cobra uma assinatura para quem quiser participar do seu evento e recebe patrocínio próprio e independente do evento principal. O evento sol, nesse caso, registrou uma audiência de 300 mil, enquanto o Gaulês, teve 200 mil.

Fonte: Omelete, O Gamer Gaules

O Burning Man tem uma série de eventos satélite ao redor do mundo, chamados de “regionals”. Estes regionais seguem os “10 princípios” do evento sol e são organizados por produtores independentes. O regional do Chile, se chama Fuego Astral, o da África do Sul, Afrika Burn, o do Brasil, Tropical Burn, etc. Eu pude contar mais de 60 eventos satélite no diretório global da comunidade. Este ano, em reação ao COVID, a comunidade vai recriar o evento digitalmente em uma rede de milhares de eventos grandes e pequenos interligados ao redor do mundo.

Fonte: Mapa de Regionais, Burningman.org

Se adotarmos um prisma comercial, estes eventos satélite podem ser vistos como “franquias” que compram direitos de marca para produção local. É o caso dos eventos, “Tardezinha” e do “Baile do Zeh Pretim” que tiveram edições em dezenas de cidades no país. Os eventos não ocorrem simultaneamente, mas os produtores locais arcam com a produção e seguiam as diretrizes de cada marca para criar experiências locais. Com o advento do streaming poderemos ter dezenas de instâncias de cada marca ocorrendo simultaneamente no Brasil e fora dele. A última Tardezinha atingiu o marco de encher o Maracanã. A próxima, talvez não caiba nele.

Comentários Finais

O modelo acima na verdade subestima o potencial do arranjo. Tanto pelo fato de termos usado apenas 4 instâncias do evento principal, como por termos usado uma curva de demanda linear. Isso faz com que o modelo subestime a “cauda longa” de usuários. Em outras palavras, existe um mercado enorme de pessoas que pagariam um ticket baixo para ter experiências em casa que é ignorado no modelo (como confirmado pela nossa pesquisa). Em um cenário onde o artista possui uma base de milhões de fãs, mesmo com um preço muito baixo, gera um retorno superior a shows “normais”.

No modelo, eu não fatorei custos de produção adicionais por evento satélite. É provável que os eventos satélite operem pagando fees ou royalties para o “evento sol” que pode ou não dividir o custo fixo. De qualquer forma, o argumento se mantém mesmo se corrigirmos a receita bruta para uma porcentagem, pois o ganho de escala é muito grande. Mais importante: o modelo não fatora receitas de mídia e patrocínio que podem ser enormes, uma vez que o modelo escala.

Por fim, o evento sol, que pode ser muito menor fisicamente, ganha uma projeção enorme. Todas as dificuldades de deslocamento, logística, hotéis, trânsito são ultrapassadas. Estes não possuem o enorme risco de um evento presencial concentrado em um único local (riscos de embargos, segurança, meteorológicos). Você sabia que alguns produtores contratam um cacique removedor de chuvas? É sério.

Então, o evento sol vira um guia cultural com papel de direcionar a comunidade. A comunidade não é o evento. A dinâmica aqui se inverte: o evento passa a ser uma manifestação, uma celebração da comunidade e seus valores. No Brasil, as festas “Caraivanas” ocorrem no decorrer do ano e tem seu ápice no ano novo na Bahia. Os fanáticos por cultura geek se conectam durante vários eventos menores e tem seu grande momento na Comic-Con Experience, etc. Uma vez que percebemos que eventos refletem comunidades, descobrimos o que é a verdadeira essência dessa manifestação cultural. Essa essência já nasce imune a qualquer pandemia.

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Gabriel Benarrós

Behavioral Economist — Stanford University, Founding-CEO @Ingresse, Endeavor Entrepreneur, Forbes 30 Under 30