O Céu Quando Foste Embora
A tarde chegava com uma luz laranja em um dia chuvoso. Tive um pressentimento ruim ao ver uma luz etérea que atravessava o céu fechado. Fui pela milésima (perdi as contas) vez ao hospital, onde tanto odiavas ficar.
Sentias dor. De novo. Tentávamos controlar teu sofrimento e, por vezes, gosto de pensar que conseguimos. Por volta de meia noite voltava para casa. Mas antes mesmo de chegar recebi a ligação do meu tio que tinha ficado a te olhar: “Gabriel volta ao hospital”; Uma sucessão de ligações de médicos e de volta eu estava a beira dia tua cama.
Durante tua passagem eu segurava tua mão. Será que estar ao teu lado fez a tua ida um pouco menos doída? Sei que não querias ir, mas não podias ficar. “Cuide da sua mãe e do seu irmão”, ouvi distintamente me dizeres mesmo sem falares.
“Eu cuido, pai”.
Prometi honrar teu nome, pedi desculpas se alguma vez te desrespeitei e disse “obrigado” tantas vezes por ter me banhado em amor por toda uma vida.
Fui ao cemitério judaico e o dia amanhecia estranho. Era o primeiro dia sem você. Vi um nascer do sol alaranjado e, percebi que não mais podia pensar ao ver algo bonito: “preciso contar ao meu pai”. Que estranho. Tudo é um pouco menos belo sem você. Nada, nunca mais, não terá pelo menos um grão de melancolia. Isso é crescer?
O tempo se fechou, garoa veio enquanto eu dirigia ao cemitério. Chuva veio e passou várias vezes. Escolhi um lugar calmo e reservado para você, longe de muita gente. A chuva aumentou de novo e o tempo se fechou completamente. Fizemos teu velório e meu tio sentou longamente ao teu lado. Recebi algumas pessoas que, não sei como, ficaram sabendo onde deveriam ir. Eras muito mais amado do que imaginavas. Mas nunca te importaste com isso.
O Chazán cantou e foi bonito. Rasgamos nossas camisas para simbolizar que uma parte de nós foi arrancada. Te levei ao teu jazigo e subitamente o céu se abriu, veio um sol impossível. Me despedi mais um vez — e continuo me despedindo de cada pedaço teu que encontro pelo caminho.
O sol começou a se por e fazia quase um dia que eu não dormia — esse estranho dia. Voltei a ver o laranja do início do dia brevemente, mas o laranja se tornou lilás, e depois roxo e, por fim, veio um forte vento. Ao chegar em casa, as janelas e portas da casa se escancararam. Minha sogra tomou um susto.
Deitei no sofá sem conseguir dormir e, por um fresta de janela, vi as nuvens correrem naquele céu lilás, arrastadas por uma ventania pouco usual. Me disseram que vinha uma frente fria. É besteira pensar que aquele espetáculo era para ti receber? Tu que és um em um bilhão.
Olhava pela fresta da janela e não queria que o dia passasse, pois isso me fazia sentir um pouco mais longe de ti. Se pudesses agarraria as nuvens e o céu para que revolvessem mais devagar e eu tivesse algumas últimas horas daquela tua presença.
Uma amiga achou o céu tão bonito que tirou fotos do céu de minuto em minuto. Não foi um por do sol extravagante, muitos talvez não o perceberam. Ele foi delicado, sutil e profundo, exatamente como era a tua presença. Uma conjuntura tão sublime que exigia atenção para ser percebida. Mas ao ser percebida, era inesquecível.
O sol se pôs meu pai. Eu agora sigo sem você e a partir de amanhã vem a tal da frente fria. “Cuido sim, pai.”
Fotos: Cecília Costa